segunda-feira, 21 de abril de 2014

Se eu escrevesse a minha biografia…


…diria, sem falsa humildade, de forma bem consciente, que vivi experiencias únicas neste quarto de século.
Nasci com direito a tudo, numa infância privilegiada, numa vivenda amorosa, num sitio calmo, com bastante contacto com a natureza. Tive brinquedos a perder de vista, até as minhas Barbies tinham sanita e cresci livre, subia às árvores para colher amoras, montava vacas, cavalos. Tive uma ovelha de estimação que ia connosco visitar os avós, no carro, tal qual um cão.
Tentaram impingir-me o Catolicismo mas falharam. Lá fiz a primeira comunhão para ver a minha querida avó feliz e pronto, terminei a minha falsa carreira de amor a Jesus.
Vivi em imensos sítios. Nunca sei que responder quando me perguntam de onde sou. Tive um irmão com Trissomia 21 que nos fazia procurar a cada ano um especialista novo, um centro melhor, uma escola mais indicada.
A única coisa má? O nosso pai. Pai que tinha vergonha de ter um filho diferente, nunca o tirava de casa. Pai que acreditava que amor paternal era dar dinheiro, brinquedos. Aos 16 anos ofereceu-me uma mota. Nunca gostei de motas. Primeira voltinha para experimentar, cai. Esfolei-me toda, rasguei as calças e o meu pai correu para ver se a mota estava bem. Ao fim de 3 meses de equitação cai e, pelo stress e trauma do momento, as minhas vértebras prenderam, estive uns minutos sem movimento da cintura para baixo, imaginando-me paraplégica a uma semana dos meus 18 anos. O meu pai lá veio e levou-me ao hospital sempre reclamando do tempo que estava a perder com aquela ida às Urgências. Como marido era ainda pior, humilhava, ofendia, mal tratava.
Eu era tão tímida, reservada. Um bichinho anti-social. A adolescência despertou-me. Tornei-me, não sei ainda hoje como ou porquê, faladora, comunicativa e muito expressiva. Mas sempre com muito carácter, nunca fui influenciável, nunca fumei, nunca experimentei drogas e não bebo. Sinto-me bem assim.
Aos 17 surgiu a minha primeira viagem sozinha. E ficou o bichinho dentro de mim.
O futuro? Nunca me imaginei a nºao ir para a Universidade. Desde criança que sabia bem o que queria e qual a profissão. Aos 18 lá fui. Decorria o ano de 2007. E aí tudo mudou. A rapariga mimada, cheia de tudos, de certezas, dinheiro, segurança viu-se obrigada a crescer e optar.
O meu irmão morreu, o meu pai arranjou outra mulher e decidiu fingir que eu não existia. Tive de trabalhar para pagar os estudos. A Universidade deixou de fazer sentido, o curso desmotivou-me. Algo me dizia que eu não precisava de um curso para nada, que o meu rumo seria diferente, aventurar-me na Vida, perder-me para encontrar algo. Congelei a matricula e fui ver o que me reservava a Vida.
Trabalhei um verão inteiro como empregada doméstica na casa de uma Princesa espanhola em Madrid, fiz vários trabalhos e organizei eventos em Marbella e Mérida. Viajei muito. Fiz amigos novos e inesperados. Voltei ao Alentejo, a casa. O meu pai tirou-nos a casa e tivemos de nos fazer ao incerto, móveis às costas. Alugamos um T2. Eu perdida e confusa, a minha mãe rancorosa e cheia de ódio. Agora, 2 anos depois de termos perdido a casa, volta a acontecer. Eu fico desempregada em Junho e não poderei mais dividir a renda com a minha Mãe. Resta-nos assumir a situação: vamos viver num bairro social com frequentes assaltos, numa casa dos anos 70, abandonada há anos, tecto a cair, que pertence aos meus avós maternos. Para mim, isto nem é o pior. A parte má é que os meus avós são divorciados mas nunca trataram das partilhas, logo se a minha avó morre, vem o ex dela (meu avô) reclamar a casa e ficamos de novo na rua. Falo assim porque não temos nenhuma ligação com este homem, ele partiu para África quando eu tinha 2 anos, construiu outra família e não é, de todo, boa pessoa.
Não bastasse tudo isto, eu que cortei relações com o meu pai em 2010, vejo-me agora com ele em braços. Parece que sai de debaixo das pedras. Vejo-o muito e ele lembrou-se que tem filha. Mandou o meu avô levar-me um telemóvel e uma tablet ao meu local de trabalho em nome dele. Foi à escola de condução em que ando dizer que pagaria as prestações que faltam. Mandou-me mensagem para o face a dizer que gostaria de se encontrar comigo. O tipo é o demónio em pessoa. Toda a gente muda, acredito, mas no caso dele não. Nem sei que lhe diga.
As obras da casa no bairro social começaram hoje. Estamos a gastar todas as nossas economias. E para quê? Para que dentro de meia dúzia de anos venha o anormal do meu avô despejar-nos?
Tenho uma biografia do caraças mas que começa a ser cansativa. 

6 comentários:

  1. Como eu te compreendo Raven, aquele sentimento de não termos um suporte se algo correr menos bem amanhã. Viver todos os dias à beira do abismo não é fácil. Infelizmente aquela que outrora foi uma família unida rapidamente se desmoronou e desmoronou também aqueles que dependiam dela, penso nisso quase todos os dias. Com isso aprendi tudo aquilo que uma família não deve ser e se o destino quiser um dia terei a minha família de sonho.

    Maior força.*

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    1. A minha nunca foi unida. Desde que tenho consciencia de mim, que me lembro do meu pai a não querer ser pai e a humilhar a minha mãe. Mas comparto do mesmo sonho que tu. Se algum dia tiver uma familia, quero que seja o oposto da que tive. Mas não desanimes, pessoas como nós tornam-se fortes e com futuros prometedores :)
      Afinal, como diria alguém: Mar calmo nunca fez bom marinheiro.

      Beijinho

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  2. Tu és uma mulher cheia de força, com um coração de ouro. A vida tem sido madrasta contigo, mas acredito num futuro melhor para ti.

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  3. Se calhar vou perguntar uma parvoíce (porque ninguém ia lembrar-se disto mas eu): em vez de fazerem obras, não era melhor alugarem uma casa, com as economias que têm e esquecerem essa? Desculpe o atrevimento e nem sequer quero que me responda, mas tocou-me o seu post, porque o senti infeliz, demais.

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    1. Não é atrevimento nenhum, Maria! Eu abro o meu coração e espero sempre um feedback vosso. Quando o meu Pai nos tirou a casa, usamos umas economias para alugar esta em que estamos. Mas por sorte, arranjamos trabalho, uns contratos precários do centro de emprego, durante este tempo e fomos dividindo a renda entre as duas. Mas agora eu ficarei desempregada no mês que vem e a minha mãe em setembro. Sem eu poder contribuir, serão ainda vários meses em que só a minha mãe carregará tudo às costas com o ordenado mínimo. E vamos tirando daqui e de acolá e as economias vão desaparecendo. E a partir de setembro? Ela tambem fica desempregada. Viver de economias durante tempo indeterminado é muito arriscado. Depois acaba-se o dinheiro e não temos como pagar a renda nem fazer obras. Preferimos já optar pelas obras e rezar para que a minha avó ainda tenha mais uns anos de vida pela frente, sem pensarmos em partilhas. Porque se a minha avó ainda viver uns 5 ano que seja, sempre é mais do que durariam as nossas economias a pagar renda, água, gas, comida... E não tendo que pagar renda, se voltarmos ao mercado de trabalho, podemos voltar a juntar dinheiro para o que aí vem.

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    2. És uma grande mulher! E para mulheres como tu, o destino guarda sempre coisas muito boas :)

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